A bicicleta de Kainz e a responsabilidade da Pantera, por Florbela Pires (advogada)
É injustificável também que instrumentos europeus aplicáveis a situações internacionais atribuam competência à lei de um país mas não reconheçam aos tribunais desse país a competência para aplicar a sua própria lei
Rita Gonçalves
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Por Florbela Pires, advogada associada da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira
Era uma vez um consumidor residente em Salzburgo, de seu nome A. Kainz. Kainz adquiriu a um comerciante, na Áustria, uma bicicleta produzida pela sociedade de direito alemão Pantherwerke AG. Kainz pedalava em território alemão quando se soltaram as extremidades da forqueta da bicicleta, o que provocou um acidente com os inevitáveis ferimentos e outros danos. Pretendendo responsabilizar a sociedade fabricante (por produto defeituoso), Kainz demandou a Pantherwerke nos tribunais austríacos e fundamentou a competência destes na circunstância de a bicicleta ter sido colocada em circulação em território austríaco e ali ter sido adquirida por um consumidor final.
A competência do tribunal austríaco foi contestada pela Pantherwerke e a questão acabou por subir ao Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, por estar em causa a interpretação de regra de regulamento comunitário sobre competência internacional. Trata-se da regra segundo a qual, em matéria de responsabilidade extracontratual, o eventual responsável pode ser demandado no lugar onde ocorreu o facto danoso (além do tribunal do país onde se encontre domiciliado, nos termos da regra geral). Desde 1976 que o critério do lugar onde ocorreu o facto danoso tem sido interpretado como atribuindo competência quer ao lugar onde o dano se verificou quer ao lugar onde ocorreu o evento que originou o dano.
Que aconteceu então em A. Kainz v. Pantherwerke AG (C-45/13, 16/01/2014)? Algo insólito para Kainz e suficientemente interessante para os demais. No caso, o tribunal considerou que quando está em causa a responsabilidade de um fabricante por um produto defeituoso, o lugar do evento deu origem ao dano é o lugar em que o produto em questão foi fabricado. O Tribunal de Justiça recusou atribuir relevância ao lugar de aquisição do produto ou ao lugar de colocação do produto em circulação, critérios que permitiriam que Kainz demandasse a Pantherwerke nos tribunais austríacos. De salientar que o Tribunal de Justiça afirmou que a interpretação das regras de competência internacional não deve ser influenciada pelas regras uniformes europeias relativas ao direito aplicável (Regulamento 864/2007-Roma II).
Esta decisão suscita perplexidade. Na sequência da interpretação do Tribunal de Justiça, o tribunal austríaco não tem competência. Kainz tem então de demandar a Pantherwerke nos tribunais alemães, os quais, nos termos do Roma II, devem aplicar ao caso o direito…austríaco. Com efeito, segundo o artigo 5/1/a) do regulamento, a lei aplicável será a do país onde o lesado tenha a sua residência habitual, no momento em que ocorre o dano, se o produto tiver sido comercializado nesse país. Só assim não seria se a Pantherwerke demonstrasse que não poderia razoavelmente prever a comercialização do produto, ou de um produto do mesmo tipo, na Áustria, caso em que passaria a ser aplicável a lei alemã. Ora, as circunstâncias do caso indicam claramente que a Pantherwerke distribuía as suas bicicletas na Áustria e podia, por isso, prever a sua comercialização neste país.
Kainz foi vítima da inconsistência entre as regras europeias sobre a competência dos tribunais e as da lei aplicável. Quanto ao tribunal competente, nota-se que a proteção conferida aos consumidores quando se trate de relações contratuais não foi acompanhada da necessária adaptação nos casos em que o consumidor demanda diretamente o produtor.
Naturalmente que, como regra geral, é indefensável que o consumidor possa demandar o produtor em qualquer tribunal ou até que o possa fazer, sempre e em qualquer circunstância, no lugar da sua residência habitual. Mas é injustificável também que instrumentos europeus aplicáveis a situações internacionais atribuam competência à lei de um país mas não reconheçam aos tribunais desse país a competência para aplicar a sua própria lei.
O drama de Kainz: encurralado na Alemanha, quando a responsabilidade do produtor até está harmonizada na Europa, através de diretiva. Quanto à Pantherwerke, terá despendido mais na alegação da incompetência do tribunal austríaco do que se tivesse cedido ao peticionado por Kainz?