@Manuel Torres Garcia
Jerónimo Martins está a trabalhar para produzir carne com zero emissões
As emissões de gases com efeito de estufa podem ser mitigadas através da alimentação que fornecemos aos animais? A dona do Pingo Doce está convencida que sim. A Jerónimo Martins tem em marcha o projeto “Green beef” com o objetivo de produzir carne de bovino com zero emissões
Rita Gonçalves
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As emissões de gases com efeito de estufa podem ser mitigadas através da alimentação que fornecemos aos animais? A dona do Pingo Doce está convencida que sim. A Jerónimo Martins tem em marcha o projeto “Green beef” com o objetivo de produzir carne de bovino com zero emissões
A Jerónimo Martins tem em marcha um projeto para produzir em solo português carne de bovino com zero emissões, disse José Fraga, diretor de operações agropecuárias da Best Farmer, braço agroalimentar do dono do Pingo Doce, por ocasião da conferência “A alimentação no futuro: evolução ou revolução?”, organizada pela Jerónimo Martins.
O projeto “Green beef” assenta numa estratégia de alteração da alimentação fornecida aos bovinos através da introdução de aditivos, como a alga vermelha dos Açores ou compostos azotados, para inibir a produção de metano. “As algas são inibidoras de metano muito potentes”, confirmou Rui Bessa, investigador na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, dando como exemplo testes in vitro que alcançaram reduções de 98% nas emissões de metano.
As emissões de gases com efeitos de estufa podem ser mitigadas através dos alimentos que damos aos animais? “Sim, pelo menos, mitigar parcialmente”, afirma o investigador. “Temos em curso projetos para reduzir até 70% as emissões de CO2 através da alimentação. Este é um mundo completamente novo, ainda há muito trabalho a fazer, mas temos grandes perspetivas”. O investigador ressalva que esta estratégia alimentar deve ser integrada numa estratégia holística de eficiência em toda a cadeia de produção animal para alcançar resultados “muito positivos” na redução da pegada por unidade de produto.
O crescimento da população mundial e a proteção do planeta têm vindo a aumentar a pressão sobre produtores, retalhistas e restantes elementos da cadeia de abastecimento alimentar. Como alcançar o equilíbrio entre uma produção competitiva e, ao mesmo tempo, ambientalmente responsável? “A Best Farmer acredita que tem a responsabilidade de produzir de forma cada vez mais sustentável e, desde o início, que tem vindo a fazer um caminho de redução da pegada ambiental”, conta José Fraga. O projeto “Green beef” é mais um passo para alcançar o objetivo de produzir carne com zero emissões. “Este é um caminho que se vai fazendo, quer através do aumento da nossa eficiência (se conseguir fazer um animal que cresce dois quilos por dia, versus um que cresce um quilo no mesmo período, reduzo para metade as emissões e a utilização de recursos e consumos) quer através de mudanças na alimentação”.
“O que estamos a fazer é tentar perceber se realmente existem misturas mais benéficas para as emissões de metano e de carbono e se os aditivos, como as algas e os compostos azotados, eliminam as emissões. Eu considero que sim, não há sistemas de produção de proteína perfeitos, mas nós temos de os tornar cada vez mais sustentáveis”, sublinha José Fraga.
O teste de introdução das algas vermelhas na alimentação está a ser feito num universo de 50 animais. A alga é utilizada em formato de óleo. Rui Bessa explica que o composto da alga atua na metanogénese (microrganismos que vivem numa comunidade microbioana dentro dos bovinos) e são esses microorganismos que digerem a erva, mas é “altamente volátil”. “Se secarmos a alga ao sol, por exemplo, já não temos composto. O que está a ser feito um pouco por todo o mundo é liofilizar a alga. Mas, como liofilizar a alga é caríssimo, insustentável para a produção animal, surgiu esta ideia. Mergulhamos a alga no óleo e o composto passa para o óleo e ficado lá retido. Temos trabalhado na inclusão de óleos alimentação dos animais para melhorar a qualidade dos ácidos gordos da carne”, explica.
Algas, compostos azotados e subprodutos da indústria alimentar
As explorações da Jerónimo Martins são certificadas em bem-estar animal e o bem-estar animal é um grande promotor da sustentabilidade, explica o responsável da Best Farmer. “Os animais têm esta maravilha que quanto mais condições lhes damos mais aumentam a sua eficiência e a sua produtividade e reduzem também o custo em termos de emissões”. E dá exemplos.
“Por exemplo, na produção de leite quando começámos a nossa atividade tínhamos 1.100 vacas à ordenha e produzíamos 10 milhões de litros de leite e, neste momento, temos cerca de 800 vacas e produzimos os mesmos dez milhões ou talvez um pouco mais”. Os aumentos de produtividade por vaca, que levaram também a reduções de custos e das próprias emissões de gases nocivos, foram conseguidos através de projetos de melhorias genéticas e de melhorias das condições de bem-estar animal, entre outros projetos, exemplifica o gestor.
O projeto “Green beef” está, desta forma, enquadrado numa estratégia global de redução de emissões. “Começámos por medir as nossas emissões e ver como estávamos em benchmarking. Percebemos que estávamos bem, porque já usávamos um conjunto de técnicas para reduzir as emissões. A seguir, definimos as estratégias a implementar para reduzir ainda mais estas emissões. E, depois, compramos uma máquina de medição de metano, através da qual conseguimos perceber se a introdução de algas, compostos azotados e a mistura de diferentes matérias-primas de alimentos funcionam”, descreve o diretor de operações agropecuárias da Best Farmer.
“Numa exploração tradicional a engorda de animais, na maioria das vezes, é feita com recurso a rações que são uma mistura de cereais, 90% de ração e 10% de palha. Na Best Farmer fazemos uma alimentação completamente diferente, utilizamos silagens de milho e erva, que são produzidas nas nossas explorações ou compradas localmente”, explica. As silagens representam cerca de metade da alimentação dos animais. Além destas, a empresa alimenta os animais com subprodutos da indústria alimentar, como são exemplo o bagaço de cerveja, a cenoura, o melão, o tomate e a uva. “Na prática, tudo o que o mercado não consegue aproveitar para vender”. Só 10% da alimentação corresponde a rações importadas, “apesar de nos esfoçarmos muito para que o milho seja nacional”.
José Fraga indica que este tipo de dieta, além da vantagem da circularidade, “estamos a alimentar os animais com desperdício alimentar”, tem ainda o benefício de ser constituída em 70% por água, versus a ração tradicional composta por 10% de água. Isto leva a que o animal consuma menos 30% de água, “comprovámos recentemente num estudo”, permitindo poupar neste recurso que é tão escasso.
Há um ponto limite para a utilização de subprodutos da indústria alimentar na alimentação dos animais? “Não sabemos exatamente. Isto é uma inovação. O que percebemos é que funciona bem. Deixamos de ter problemas digestivos e metabólicos, nós próprios ainda estamos a aprender quanto é que podemos dar. O limite não sabemos qual é, até porque não conseguimos ter tudo o que necessitamos. Se conseguíssemos ainda ter mais subprodutos, utilizaríamos mais”, adianta o responsável.
A aposta na dieta com subprodutos impacta ainda a competitividade da empresa, uma vez que está menos dependente das flutuações do mercado das matérias-primas.
O próximo passo do nosso projeto passa por envolver todos os stakeholders na adoção das boas práticas que a empresa certifica com a ajuda da ciência, avança José Fraga, assim como por estudar formas de utilizar os estrumes. “Nos próximos anos, temos de olhar para os estrumes enquanto fonte para a produção de energia. Estamos a estudar um projeto para fazer isso nas nossas explorações. E também melhores medidas de utilização de água”.
Rui Bessa lembra que a questão de mitigar a produção de metano através da alimentação aplica-se a todos os ruminantes, incluindo ovinos e caprinos, acrescentando que, regra geral, os testes das dietas alimentares são feitos em ovinos “porque são mais pequenos e é mais barato fazer os ensaios. Muitos destes conceitos são testados em ovinos e escalados para bovinos, porque é muito mais trabalhoso e envolve mais recursos”.
As vantagens da pastagem semeada biodiversa
A Terraprima, empresa spin-off do Instituto Superior Técnico, é parceira da Jerónimo Martins no projeto de diminuição da pegada ambiental da produção de carne de vaca. Nuno Rodrigues, consultor e investigador na empresa Terraprima, defende que, ainda que se consuma “demasiada carne de bovino em Portugal”, a “simples redução do consumo não será solução até porque pode levar à importação de carne de outros países que não sabemos como é produzida”.
Para o responsável, a solução pode passar, sim, pela combinação de três iniciativas: pastagens semeadas biodiversas, montado e um acabamento intensivo sustentável. “As pastagens semeadas biodiversas, solução pioneira em Portugal”, constituem um sistema eficaz para sequestrar carbono. Já temos publicações que atestam o sequestro de seis toneladas de CO2 por ano. E isto é único no mundo”.
As pastagens biodiversas retêm o carbono no solo? “Sim, ao contrário de outras soluções de retenção de carbono em ambiente florestal que têm risco de incendio, nas pastagens semeadas biodiversas o carbono fica fixo, sequestrado na terra e não é reemitido. Se a terra não mobilizada o carbono fica lá para sempre”, explica. “Diria que uma pastagem natural não tem retenção de carbono. Ainda que, durante os primeiros anos, numa pastagem natural haja alguma retenção de carbono, como o agricultor tem recorrentemente utilizar técnicas de mobilização para controlar os matos, a mobilização acaba por destruir a estrutura e a matéria orgânica que está no solo e o carbono que foi retido é reemitido”.
A Terraprima trabalha com as pastagens biodiversas já há alguns anos. “Portugal tem um sistema altamente produtivo para o pastoreio, com muita proteína, mas, por vezes, é difícil avaliar de que forma os nossos animais podem aproveitar melhor essas pastagens”, explica Nuno Rodrigues. Para dar resposta a este problema, a empresa promoveu um conjunto de projetos que permitiram reter uma série massiva de dados e relacionar esses dados com outros muito baratos e que estão à disponibilidade de todos, como as imagens de satélite. “Através dessas imagens, conseguimos identificar no pasto onde existe mais proteína, por exemplo, e, depois, através das coleiras de GPS, localizar os animais e direcioná-los em função das suas necessidades nutricionais”.
Qual tem sido, então, o contributo da tecnologia para melhorar a sustentabilidade das explorações de produção animal? O investigador na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa explica que é mais difícil aplicar soluções tecnológicas quando os animais estão em acabamento, por estarem mais confinados e controlados e que, como uma grande parte da fatia das emissões está nas mães dos animais que vão ser engordados, soluções como as pastagens biodiversas e o montado são muito eficientes. “Existe agora uma tecnologia que pode ser fantástica e é tão simples como investir numa cerca”, explica. Em grandes explorações, “a tecnologia de cercas eletrónicas, em que a vacada anda com GPS e é orientada na pastagem pode ser muito eficaz”.
Nuno Rodrigues chama a atenção para o facto de a produção animal em Portugal não servir só o propósito de produzir alimentos. “Se formos fazer um passeio ao Alentejo gostamos de ver a paisagem que nos rodeia e essa paisagem só ocorre porque existe lá produção agrícola”, defende, acrescentando que, a partir do momento “em os agricultores tenham à disposição formas sustentáveis de produzir, fixam-se e estão a prestar outros serviços à sociedade, os chamados serviços ambientais, que de outra forma não existiam”.
Qual tem sido, por outro lado, o apoio das entidades públicas para o desenvolvimento deste tipo de projetos? “Passámos de uma fase em que o Estado português investiu num projeto massivo de mobilização de agricultores para o sequestro de carbono, um projeto com muito sucesso, tivemos mais de mil agricultores a sequestrarem mais de um milhão de toneladas de dióxido de carbono (compensa um milhão de viagens entre Portugal e Brasil de avião), mas que findou com o fim do protocolo de Kyoto”, lembra investigador da Terraprima.
“Não quero ser injusto, mas penso que as políticas publicas têm avançado, mas, por vezes, não são eficientes. Devia haver uma maior abertura à academia. Temos numerosas publicações de norte a sul do país, feitas nas universidades portuguesas, que são ótimas e têm ótimos investidores, e devia haver um maior alargamento da discussão dessas políticas públicas à academia, porque é onde está o conhecimento e as políticas podem beber muito daí”, defende.
Além do sequestro de carbono, Nuno Rodrigues identifica outras prioridades. “O solo é onde fazemos toda a atividade humana desde a construção das nossas casas e estradas até à produção dos nossos alimentos. A erosão do solo e desertificação estão entre os grandes problemas do século XXI”, considera. “Está a haver uma grande perda de solo e o agricultor, enquanto pessoa que trabalha o solo e mantém a terra nas melhores condições, porque é do seu interesse manter o solo nas melhores condições, presta um serviço muito importante à sociedade. Se deixarmos de ter solo, deixamos de ter alimentos, deixamos de ter vida”, termina.
*Artigo originalmente publicado na edição 408 do Hipersuper