“A inteligência é o pináculo da maturidade nos sistemas da fábrica do futuro”
O mercado de consultoria industrial em Portugal está tradicionalmente focado na otimização de processos, área que representa 40% da faturação da Bosch Industry Consulting (BIC). Mas o paradigma está a mudar. As agendas de investimento estão atualmente focadas em produto. Metodologias de redução de complexidade, engenharia de valor, avaliação avançada de cadeias de valor e digitalização, são áreas em crescimento
Rita Gonçalves
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O mercado de consultoria industrial em Portugal está tradicionalmente focado na otimização de processos, área que representa 40% da faturação da Bosch Industry Consulting (BIC). Mas o paradigma está a mudar. As agendas de investimento estão atualmente focadas em produto. Metodologias de redução de complexidade, engenharia de valor, avaliação avançada de cadeias de valor e digitalização, são áreas em crescimento
A Bosch está a apostar forte na unidade de negócio “Industry Consulting”, lançada em 2018. Que balanço faz desta área de negócio?
A aposta no desenvolvimento deste negócio na Península Ibérica está claramente ganha. O objetivo de rentabilidade foi atingido um ano antes do que havíamos planeado, apesar da recessão provocada pela pandemia. É uma enorme fonte de orgulho e motivação poder hoje oferecer no mercado um leque cada vez mais alargado de serviços de consultoria industrial que permite aos nossos clientes melhorar as suas operações de forma integrada. Consolidado este resultado, o caminho agora é continuar a fazer crescer o negócio.
Como evolui o portefólio de serviços prestados pela BIC neste período?
O mercado da consultoria industrial em Portugal está historicamente focado na otimização de processos. Esta é uma área onde a Bosch já conta com algumas décadas de experiência não só na aplicação do chamado Lean, mas também no desenvolvimento de metodologias e ferramentas de suporte, pelo que não tivemos dúvidas de que deveríamos estar presentes nesse mercado, que representa hoje cerca de 40% da nossa faturação.
No entanto, a experiência industrial da Bosch não se resume à melhoria de operações existentes, pelo que o nosso portefólio de serviços tem vindo a refletir justamente essa abrangência.
Que serviços prestam atualmente?
Oferecemos, hoje, serviços de desenvolvimento de produto e processo, de forma simultânea, utilizando metodologias que são utilizadas e melhoradas continuamente sempre que desenvolvemos novos produtos. Numa altura em que as agendas de investimento se focalizam no produto, é importante realçar que a BIC disponibiliza know-how neste campo que possibilita melhorias significativas nas margens operacionais logo após o SOP [da expressão inglesa Standart Operating Procedures]. Estamos a falar de metodologias de redução de complexidade, engenharia de valor e avaliação avançada de cadeias de valor que permitem justamente a otimização de processos muito antes de se tomar decisões de investimento. Além disso, potenciam e protegem as vantagens competitivas decorrentes dos processos de inovação de produto e processo.
Há ainda várias outras áreas onde oferecemos valor para os nossos clientes industriais: gestão de grandes projetos industriais (fábricas novas, transferências, expansões, entre outros), industrialização de processos, desenho de sistemas de trabalho e ergonomia, formação lean&i4.0, entre outros.
Atualmente, não é possível falar de indústria sem incluir a dimensão digital e pensar o valor dos dados desde o início do projeto. Nesse sentido, oferecemos frequentemente soluções que incluem a dimensão digital em diversos graus (desde opcional a completas transformações do negócio e das operações).
Com que ferramentas e sistemas trabalham?
O leque de ferramentas, metodologias e sistemas que utilizamos é enorme, mas de uma forma geral podemos dizer que utilizamos o método que melhor se adeque à situação, segundo a experiência das nossas mais de 240 fábricas a operar em variadíssimos setores e cadeias de valor. Por exemplo, no que respeita ao desenho de processos industriais utilizamos uma framework padronizada que inclui várias ferramentas desde DFMA [Design para Fabricação e Montagem] até ao mapeamento de fluxos de materiais e informação, passando pelo Scaling, que permite definir a estratégia de investimento de acordo com o ciclo de vida do produto e o risco organizacional correspondente.
Quando falamos de desenho de postos de trabalho utilizamos frequentemente o MTM [da expressão inglesa Methods Time Measurement], uma metodologia que nos permite definir e controlar com exatidão a eficiência dos processos manuais, possibilitando ganhos de produtividade até 35%. Apesar de ser uma metodologia relativamente antiga não deixamos de recorrer às mais recentes ferramentas informáticas para facilitar a análise, gestão e integração dos tempos do método, nomeadamente com os ERP [Sistema integrado de gestão empresarial].
Quando trabalhamos cadeias de processo novas é comum utilizarmos sistemas de simulação de operações que permitem a já referida otimização muito antes da decisão de investimento, além de criarem frequentemente a primeira representação do gémeo digital dos equipamentos fabris.
A que tipo de áreas de atividade se dirigem?
Os nossos serviços adequam-se melhor a processos de produção de produtos discretos, tendo em conta que é essa a área de maior experiência da Bosch.
Como se constitui a equipa da BIC? Quais as principais competências e skills?
A equipa da BIC é composta por profissionais com uma experiência média de 22 anos em desenho e gestão de operações industriais em diversas fábricas em todo mundo. As nossas competências nucleares são o Lean, o i4.0 e a gestão de projetos (waterfall e agile). Em cima desta base comum a toda a equipa, desenvolvemos competências de acordo com as necessidades especificas dos projetos que realizamos. O MTM é um exemplo de uma dessas ferramentas que frequentemente usamos para a análise e definição de sistemas de trabalho de conteúdo maioritariamente manual.
O framework Bosch de Desenho de Operações Industriais é outro exemplo de um conjunto de ferramentas que permitem definir cadeias de processos de forma padronizada, tendo em consideração todas as variáveis importantes para a gestão de operações industriais. Desde o desenho do produto adequado à sua fabricação, até à especificação detalhada de equipamentos e meios de movimentação, passando pela definição da semântica de dado, e a estratégia de investimento adequada ao ciclo de vida do produto e à maturidade da organização.
Quais os critérios a ter em conta e os primeiros passos a dar para definir e implementar uma estratégia de transformação digital de um processo de produção industrial e de logística?
A pergunta é interessante porque refere uma dimensão que deve ser bem pensada no início dos projetos de transformação digital e que é o âmbito da transformação. Tipicamente assistimos a um de três focos das empresas no que à transformação digital diz respeito: projetos adhoc, transformação digital de processos e ou transformação de cadeias de valor completas. Como se pode antever, o esforço e o benefício são ambos crescentes nesta sequência. É importante ainda referir que para manter a competitividade atual, existem estudos que referem que uma empresa industrial terá de, pelo menos, investir na transformação digital dos seus processos. A i4.0 – que há uns anos se apresentava como uma oportunidade – transforma-se, assim, numa ameaça caso não seja executada.
A BIC disponibiliza um programa de transformação digital das operações que se inicia com o mapeamento dos fluxos de materiais e informação (incluindo dados gerados e consumidos nos processos em toda a cadeia de valor). Este mapa permite determinar o grau de digitalização atual, além de identificar oportunidades e dificuldades. De seguida realizamos normalmente um programa de visitas a fábricas benchmark com o propósito de conhecer e avaliar tecnologias potencialmente interessantes para a definição da visão digital de operações do cliente. Após contraste dessa visão com a estratégia global do negócio e as macrotendências económicas, passamos a uma fase de detalhe, garantindo a presença dos elementos necessários, como segurança, fácil integração, escalabilidade, gémeo digital, presença em todo ciclo de vida do produto, entre outros.
Com a evolução da tecnologia, como se define hoje uma fábrica inteligente?
Mais do que definir um estereótipo é importante que as empresas elaborem a sua própria descrição do que será a sua fábrica inteligente. Essa descrição será com certeza mais próxima da sua realidade e motivará a ação concreta imediata e a execução de projetos de mudança no sentido de se aproximarem dessa visão.
Atualmente não faltam fontes de inspiração e representações dos componentes de uma fábrica inteligente: sistemas, pessoas, produtos e máquinas conectadas num mundo virtual (gémeo digital) seguro, de fácil integração, resiliente, capaz de acelerar o tempo e prever o futuro, como a manutenção preditiva, por exemplo.
É, no entanto, importante referir que os avanços tecnológicos recentes têm facilitado o uso da Inteligência Artificial (IA). Cada vez mais assistimos ao uso desta tecnologia para otimizar processos industriais de produção e logística e é lógico que assim seja, uma vez que tipicamente são estes processos diretos que geram uma maior quantidade de dados. Isto é bastante relevante pois a inteligência é justamente o pináculo da maturidade nos sistemas da fábrica do futuro. De facto, no passado colocámos muita atenção na conetividade de máquinas, mas este é apenas um requisito para se poder ter acesso a dados que se podem transformar em informação, depois em conhecimento e melhores decisões, que poderão eventualmente ser automatizadas.
De referir ainda a necessidade de criar sistemas inteligentes que sejam controláveis, ou seja, que se considere a possibilidade bem real de que um sistema de IA tome más decisões. Deve ser sempre possível avaliar a sua performance, compreender as suas decisões e melhorar o sistema. Isto não é uma tarefa fácil do ponto de vista tecnológico, mas temos necessariamente de manter as pessoas no centro das decisões porque elas serão, no limite, responsáveis pelo resultado final.
Que taxas de eficiência e produtividade podem ser alcançadas, tendo em conta a vossa experiência?
No que respeita ao negócio de otimização de processos que lida justamente com as melhorias de produtividade e eficiência, dependendo da maturidade do sistema de produção dos nossos clientes, alcançamos resultados tipicamente entre 18% e 40%. E estamos a falar de melhorias sustentadas, isto é, processos estáveis e com pouco necessidade de atenção.
Os nossos clientes operam em mercados bastante distintos desde a mobilidade, como é exemplo o [produtor português de bicicletas] RTE, o mercado dos bens de consumo e conforto em casa, do qual é exemplo a Aquinos, ou mesmo a produção de ferramentas complexas, como é o caso da MD-Moldes. Nestas empresas trabalhamos não só a melhoria das operações diretas, como também alguns processos de suporte, como o planeamento de produção.
Que impacto teve e está a ter a pandemia na indústria de transformação digital dos processos industriais e logísticos?
Apesar de a pandemia ter aumentado o ritmo de adoção de ferramentas de colaboração digital, também trouxe o inevitável aumento de cautela num cenário bastante incerto do ponto de vista económico. Como tal, alguns projetos de transformação digital nos nossos clientes foram considerados menos urgentes que outros de adaptação de capacidade e melhoria da produtividade. Isto obrigou-nos a realocar recursos entre estas áreas de negócio. No entanto, desde o final de 2020 assistimos a um retomar do interesse na transformação digital como forma de emergir da crise com uma competitividade acrescida aliada à oportunidade de poder beneficiar dos programas de apoio à recuperação.
Quais são os principais desafios que o tecido empresarial português enfrenta nesta matéria?
A questão do financiamento é importante nesta matéria uma vez que os programas de transformação digital obrigam a um investimento superior em relação aos programas de melhoria de produtividade, por exemplo. Avaliar investimentos de digitalização de operações de forma adhoc leva muitas vezes a decisões negativas porque os prazos de retorno de capital são tipicamente superiores ao ROI (retorno do investimento) de um programa mais clássico de melhoria industrial. Numa altura de pressão nas tesourarias, é normal que as decisões de enveredar por um programa de transformação digital sejam pouco frequentes. O problema é que podemos estar a pôr em risco a competitividade futura das empresas ao não investirmos seriamente no uso da tecnologia nas operações industriais.
O segundo desafio é o conhecimento. Efetivamente muito se fala de i4.0, existem até avaliadores de maturidade. Contudo, existe muito pouca oferta de desenho de operações digitais concretas e de uma forma integrada para toda a cadeia de valor. É difícil para um empresário visualizar o que poderão ser as suas operações daqui a quatro ou cinco anos. Não estou a falar de cenários genéricos de fábricas inteligentes, mas sim de propostas concretas desenhadas com as premissas do cliente e tendo em vista o seu negócio real. É justamente aqui que a Bosch Industry Consulting ajuda os clientes.
Em que estágio de desenvolvimento nos encontramos relativamente, por exemplo, aos nossos vizinhos espanhóis?
Há quatro anos estávamos em posições semelhantes, mas atualmente as empresas industriais espanholas adotam um ritmo de mudança superior. Portugal continua a ser um país de custo de mão-de-obra relativamente baixo e esse facto leva inevitavelmente a decisões diferentes no momento de decidir investir ou não em tecnologia. Isto é especialmente visível sempre que os subprojectos do programa de transformação digital obrigam à aquisição de hardware (sensores, controladores, antenas, leitores, wearables, entre outros). No entanto, há uma grande oportunidade para Portugal no que se refere ao desenho, desenvolvimento e operação de sistemas de controlo da cadeia de valor. Neste caso, o custo reduzido de mão-de-obra de TI [Tecnologias de Informação] no mercado nacional joga a favor das decisões de investimento neste tipo de sistemas.
Que setores de atividade se encontram, por um lado, mais adiantados na adoção de estratégias de transformação digital?
É de facto interessante comparar o grau de transformação em diferentes setores. A produção de bens de consumo, o setor automóvel e os produtos que necessitam de operações de montagem em geral são setores que tradicionalmente colocam grande atenção nas questões da eficiência, qualidade e controlo de processos. O setor automóvel, com a sua longa cadeia de fornecimento, é um exemplo deste tipo de preocupações. Mesmo assim, quando comparamos o ritmo de transformação digital deste setor com, por exemplo, o retalho, os media e o entretenimento, a diferença é abismal. E mais espantoso é quando observamos as oportunidades enormes que a integração das cadeias de fornecimento, no caso da indústria automóvel, poderia trazer. É comum ver muito bem definido nos contratos de fornecimento: o preço, os descontos de eficiência anual esperados, a não-qualidade admitida sem penalização, mas é mais raro ver referências aos meta dados que são esperados na relação entre cliente e fornecedor.
De que forma as empresas podem tirar partido do Plano de Recuperação e Resiliência (PPR) no caminho para a indústria 4.0?
Temos assistido nas últimas semanas à publicação das regras de acesso a alguns programas de financiamento do PRR. O caminho de acesso fica, portanto, mais claro e as empresas podem já preparar as suas candidaturas que podem incluir um grau maior ou menor de digitalização de operações, dependendo dos objetivos e das regras traçadas em cada programa.
Como se faz o equilíbrio entre pessoas e máquinas?
No que respeita à questão das pessoas e das máquinas, é importante referir três pontos chave: o primeiro tem a ver com a tecnologia que irá continuar a transformar os locais de trabalho, o que apresenta ameaças e oportunidades. Por exemplo, a diminuição do custo dos robots irá levar ao aumento do grau de automatização de algumas operações, mas, por outro lado, a tecnologia também irá ajudar mais pessoas a realizar tarefas que atualmente não seriam capazes. A partir daqui chegamos ao segundo ponto: responsabilidade sobre os processos continuará a ser das pessoas. Isto é, caso um processo automatizado com a mais recente tecnologia de IA cometa um erro grave, haverá com certeza consequências para alguém na organização. É, portanto, evidente que temos de construir sistemas inteligentes que continuem a obedecer a um princípio já antigo na indústria que é o da melhoria contínua. Isto é, têm de ser sistemas que se comportem de forma padronizada para que possam ser verificados e para que se possa reagir em caso de desvios. No fundo, têm de ser sistemas melhoráveis.
O ponto um e dois leva-nos à necessidade importantíssima de formação para todos os níveis da organização, desde os operadores até ao CEO, obviamente com conteúdos diferentes, mas todos conectados com o tema da digitalização. Para responder a essa necessidade, a BIC oferece um programa de formação rápida em lean digital onde supervisores, engenheiros de processo, analistas logísticos e diretores de operações contatam diretamente com diversas tecnologias de monitorização em tempo real de operações industriais e aprendem a fazer uso dessa tecnologia para resolver problemas, alterar conceitos de produção e melhorar fluxos de informação nas suas organizações.
Entrevista originalmente publicada na edição 394 do jornal Hipersuper