Clara Ladeira, gerente da Charcutaria Manuel Tavares há 23 anos
Casa centenária lisboeta não deixa morrer a tradição
A Charcutaria dá nome à casa Manuel Tavares mas é o Vinho do Porto o produto estrela daquele espaço da baixa lisboeta. Dali, qualquer consumidor sai um ‘expert’ no vinho português mais famoso do mundo. Talvez a loja mais antiga de Lisboa, comemora este ano o 156º aniversário, conservando o atendimento diferenciado de “outros tempos”
Rita Gonçalves
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Chamava-se de “mercearia fina” mas nos dias de hoje o conceito é mais apelidado de “gourmet”. A Charcutaria Manuel Tavares é uma casa tradicional antiga. Como diz à porta, “desde 1860” que ali está entre o Rossio e a Praça da Figueira, local privilegiado na baixa de Lisboa, sobretudo pela grande quantidade de turistas que por ali passam.
Há algo que chama a atenção de quase todos os indivíduos que caminham no passeio apertado da Rua da Betesga. Olham para a montra repleta de artigos tradicionais daquela casa, que conserva o estilo das lojas tradicionais de antigamente. As vitrines emolduradas em madeira apresentam o espaço quase como uma loja de ‘souvenir’, onde se compram as melhores lembranças que se podem levar de Portugal.
Lá dentro, são tantos os artigos diferentes. Há chocolates e “chocolatinhos”, em formatos tão variados como miniaturas de carros ou sardinhas em lata – só que nascidas a partir do cacau. Vemos bolos italianos de um lado e do outro os produtos tradicionais portugueses de charcutaria, assim como as muitas qualidades de queijos, doces regionais, patês. As paredes estão cobertas de garrafas de todo o tipo de bebidas e os funcionários vestidos a rigor, agitados atrás de um balcão posicionado no centro da loja, onde servem os vários produtos vendidos avulso. Lá vão colocando nos sacos os frutos secos, desidratados, guloseimas, entre vários outros produtos.
Quando se pensa que já nada mais cabe naqueles 60 metros quadrados, seguimos a indicação “Garrafeira” que nos leva por umas escadas até outros 60 metros quadrados. Nesta área estão os segredos mais bem guardados dos vinhos nacionais, denunciados pelo pó das garrafas.
Na cave encontramos Clara Ladeira, gerente da loja há 23 anos, a falar inglês com um cliente. Explica que para ali apenas descem os clientes acompanhados de um funcionário, quando vê que estão em levar um bom vinho para casa. As cerca de “duas mil referências” de vinhos vão “desde os cinco euros a quase quatro mil”.
“Os mais caros não se vendem propriamente todos os dias. Para já, é preciso ter poder de compra. Depois é preciso gostar e saber apreciar. Também vendemos e compramos a colecionadores”. No que diz respeito ao Vinho do Porto, o “produto mais vendido na loja”, estão cá “certos ‘vintage’ e colheitas que não se encontram em mais lado nenhum”, garante a gerente.
A “especialização” é o que mais atrai os consumidores à casa Manuela Tavares. Vêm sobretudo à procura do concelho do funcionário. “Uma grande parte das pessoas não sabe nada sobre vinhos e nesta parte nós fazemos a diferença. Damos uma explicação ao cliente do que está a comprar. Contamos mais do que a história, indicamos desde quais são as características do produto ao queijo que melhor condiz com o sabor. O Vinho do Porto, por exemplo, tem muito que se lhe diga. Não é todo igual, de maneira nenhuma. Aliás, é uma tristeza os portugueses não saberem nada sobre as diferentes qualidades que existem – os Tawny, os Ruby e por aí fora. Há vinhos que têm que ser bebidos logo depois de abertos, outros que depois de abrir mantêm a mesma qualidade durante muito tempo. Tudo isto tem que ser explicado”.
Preservar a tradição da família Tavares
O “atendimento especializado e a preservação da tradição” são os elementos que diferenciam esta mercearia face a outros formatos. O espaço tem 156 anos mas foi há 23 que o sogro de Clara Ladeira resolveu comprar a Charcutaria para os dois filhos. “Mas sou eu que trato de tudo”, sublinha prontamente a gerente, que quando assumiu o comando ainda chegou a trabalhar com antigos funcionários, “alguns já reformados”, da casa Manuel Tavares. “Pelo que estes me contaram, antigamente existiam várias lojas da família Tavares em Lisboa. A principal era aqui na Rua da Prata. O primeiro dono chamava-se Jerónimo Tavares. Depois passou o negócio para o seu filho Manuel Tavares, que foi fechando algumas lojas mas manteve sempre esta aberta. Compramos a casa à sua viúva, que não tinha ninguém para ficar com isto, as filhas não estavam muito interessadas”.
Depois de algumas obras e de um reforço na oferta, adaptaram a casa à atualidade, mantendo sempre a tradição dos produtos tipicamente portugueses, como as “carnes caseiras ou semi-caseiras” da seção de charcutaria. Mas “por mais se queira manter a tradição, há coisas que já não têm cabimento nos dias de hoje, nem são autorizadas, como vender certos produtos a granel”. Os antigos funcionários, que já não trabalham na casa, “chegaram a vender, há 50 ou 60 anos, aquilo que agora não é permitido, que são produtos a granel como a marmelada ou manteiga ao quilo ou o azeite”.
Nas mãos de Clara Ladeia, o negócio tem crescido a “uma média de 6% por ano”, sendo que o volume de negócios no último ano atingiu cerca de “um milhão de euros”.
A internacionalização da loja tradicional
São mais de quatro mil referências entre as três principais seções – Garrafeira, Charcutaria e Queijos e Chocolataria, sendo que as cerca de 300 referências de charcutaria e queijos são compradas diretamente a fornecedores portugueses. “Alguns até nos vêm aqui bater à porta para mostrarem os produtos”, conta. Devido ao fecho de importantes fábricas nacionais de chocolates, é nesta área que se notam mais os produtos de fornecedores estrangeiros. Chegam de “Itália, da Alemanha ou da Suíça”.
Já no que concerne aos frutos secos, conseguem encontrar alguns produtores portugueses. “O pinhão e a amêndoa”, enumera a responsável. De resto, “vêm de Espanha, Grécia, Turquia e os produtos desidratados, como a ameixa ou o figo, são provenientes da Tailândia e da Indonésia”.
Mas os mais procurados são as iguarias de Portugal, quer por consumidores nacionais, “que conhecem a casa através dos pais e dos avós”, quer pelos muitos turistas que dão movimento à casa. Nas alturas mais quentes do ano, a casa Manuel Tavares promove degustações. “Ainda este sábado tivemos cá um cortador profissional de presunto, neste caso era o Presunto de Barrancos. Corta-se na hora e a pessoas levam ou então enviamos numas embalagens personalizadas aqui da casa, em vácuo. Isto ajuda a vender e dá um certo charme à casa”, admite a gerente.
A mais-valia da embalagem
As embalagens personalizadas marcam também o serviço da Charcutaria Manuel Tavares. Têm caixas de vinho personalizadas, em formatos de “sete ou nove garrafas”, ideias para os turistas levarem os produtos de avião ou de barco. “Fazemos mesmo uma alça para transportarem como se fosse uma mala”, relata a responsável. Recebem também “muitos pedidos por email”.
Apesar de ainda não terem ainda loja online, enviam encomendas para todo o mundo. “Normalmente são clientes que não querem levar as garrafas nos aviões e então enviamos. Trabalhamos com a FedEx e com uma outra empresas aqui para a Europa, com custos mais baixos por não ser “express”. Os maiores problemas que temos é ao enviar para o Brasil, Estados Unidos, Canadá e China. Fazer passar bebidas alcoólicas na alfândega destes países é muito complicado. Mas já tivemos mais clientes destes países. Sobretudo os americanos têm deixado de aparecer tanto desde o 11 de setembro. Angola também chegou a ser um bom mercado mas neste momento as coisas não estão muito favoráveis por lá. Para a Europa enviamos para todos os países”.
Neste momento, já “avançaram com o projeto de uma loja online”, com lançamento previsto para “daqui a dois anos”. “O arranque é sempre o mais difícil. É preciso muito trabalho. Não pretendemos apenas colocar lá os produtos com os preços. Queremos também apresentar uma descrição dos artigos e isso obriga a pesquisa. Já temos alguém a trabalhar nisso mas vai levar ainda algum tempo”. Quanto a um novo espaço, Clara Ladeira deixa a expetativa no ar. “A médio prazo talvez vá acontecer”.