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Jaime Piçarra tem dedicado a sua vida às questões da segurança alimentar e da importância da gestão agroalimentar tanto na geopolítica nacional e mundial como na vida dos cidadãos. Foi recentemente nomeado perito nacional na Organização do Tratado do Atlântico Norte, na área da segurança do abastecimento. Com esta nomeação, passa a integrar o Grupo de Planeamento de Agricultura e Alimentação da NATO. “Não podemos negar as situações climáticas, temos que tentar fazer tudo aquilo que é possível para mitigá-las, mas sem comprometer a função da agricultura, que é a produção de alimentos”, sublinha nesta entrevista ao Hipersuper.
Portugal é um país autossuficiente em vinho e em azeite. Mas em todo o resto, o país depende em 80% de matérias-primas. A segurança alimentar é um objetivo cada vez mais difícil de alcançar no nosso país?
Bom, eu penso que não. Eu tenho uma visão relativamente positiva quanto ao futuro. Apesar, de facto, de termos constrangimentos. Uns são nossos, outros são das políticas comunitárias, políticas europeias. Mas é possível atingir um equilíbrio entre as gestões ambientais e a produção de alimentos.
Aparentemente, estamos a viver uma época em que o ambiente está a predominar relativamente a outras questões. Porque as alterações climáticas são um facto, não vamos negar. Têm muito a ver com a produção agrícola e com outro fenómeno que é muito relevante: as migrações. E depois acabamos por sofrer, de facto, o impacto de tudo isto.
Não podemos negar as situações climáticas, temos que tentar fazer tudo aquilo que é possível para mitigá-las, mas sem comprometer a função da agricultura, que é a produção de alimentos. E é nessa perspectiva que eu acredito que irá haver, agora, no próximo mandato da Comissão Europeia – e isso é a minha esperança – algum recuo nas estratégias, por exemplo, ‘Do Prato ao Prato’, do ‘Green Deal’ provavelmente. E, portanto, poderá haver um maior equilíbrio, ou uma sensibilidade maior em termos de equilíbrio.
Porque, por outro lado, não é justo que a União Europeia imponha determinadas restrições aos seus agricultores e às suas empresas, e depois não seja capaz de impor as mesmas regras aos produtos que importa de países terceiros.
Por exemplo, os agricultores têm cada vez menos acesso a produtos fitofármacos, cada vez se reduz mais o número de substâncias ativas. A União Europeia faz essas restrições, muitas vezes, em nome da proteção dos consumidores, pelo impacto dos resíduos na alimentação ou nos solos, e não somos capazes de impor, de facto, essas regras aos países terceiros. O que é que acontece? Nós que somos importadores de matérias-primas, estamos confrontados com o facto de que muitas vezes os limites de resíduos de matérias primas tão importantes como o milho e a soja, são ultrapassados porque há substâncias em que simplesmente o limite é zero, portanto, não há limite.
E, depois, temos aqui problemas de segurança alimentar – isto é, de higiene, e não de disponibilidade de alimentos – que podem pôr em causa o abastecimento. Temos de pensar em políticas integradas, em que, sempre sem perder de vista a proteção do ambiente, possamos ter várias etapas. A Europa, e estamos a fazer isso em sedes, a nível internacional, tem que medir bem até que ponto é que não está a dar tiros no pé. E a ideia que fica é que o último mandato da Comissão Europeia foi muito ‘dar tiros no pé’. Vamos ver se neste segundo mandato, apesar da presidente von der Leyer ter sido eleita com os votos dos Verdes, se é possível atingir esse equilíbrio.
A estratégia do ‘Prado ao Prato’ e, até mesmo, a Política Agrícola Comum (PAC) estão a gerar uma regulamentação ‘excessiva’ em matéria de proteção ambiental e metas que poderão comprometer a soberania alimentar europeia? Por exemplo, um dos objetivos do ‘Prado ao Prato’ é o de que até 2030, 25% das terras agrícolas da UE sejam utilizadas para agricultura biológica.
Isso é utópico. Estou envolvido em questões de revisão da política agrícola desde 1992. Acompanhei a primeira grande reforma da PAC, curiosamente, fechada pela presidência portuguesa, e essa PAC teve dois aspetos que iriam marcar, depois, a evolução das PACs seguintes. Um foi o reconhecimento da multifuncionalidade da agricultura. Isto é, a agricultura não era só produção agrícola, produção de bens alimentares, mas também a proteção do ambiente, da paisagem, dos territórios. E como tal, os agricultores teriam de ser remunerados por esses serviços. Foi a primeira vez que se falou nos bens públicos. Esse foi um efeito importante.
E a outra questão muito relevante foi que antes de 1992 assistíamos na União Europeia a excedentes de carne bovina, de leite em pó, de cereais. E, aí, tínhamos dois problemas. Como não éramos competitivos em relação ao mercado mundial, a União Europeia tinha que pagar os custos em armazenar esses produtos e depois, para exportar, tinha que pagar as chamadas restrições à exportação. E isto era insustentável. Obviamente, estávamos numa altura em que a PAC representava a maior parte do orçamento comunitário, 70%, hoje é 30%.
Houve também um momento da União Europeia, que teve a ver com a crise das vacas loucas e as dioxinas, em 1999. Houve uma série de problemas de segurança alimentar que mudaram completamente a visão, a comissão começa a priorizar a proteção dos consumidores, o bem-estar animal. Portanto, digamos que passou a haver a visão de que, se calhar, o modelo de agricultura que estávamos a fazer não era o melhor e punha em causa outras coisas. E essa é uma viragem muito significativa, em que a agricultura perde peso político. O que nós estamos a tentar fazer cada vez mais é mostrar aos decisores políticos que somos importantes e somos relevantes. E que é possível produzir alimentos de uma forma sustentável e segura para os consumidores.
Mas também é importante que a Europa, quando tem determinadas regras, as tente negociar com os países terceiros e crie no seu espaço comunitário um processo de transição, por etapas, para serem atingidas as metas. Aquela questão que referiu de 25% de terras agrícolas em agricultura biológica, que é, enfim, uma meta aspiracional, não é vinculativo. Obviamente que em alguns países, se calhar, é mais fácil de atingir, como, por exemplo, a Áustria. Mas noutros países não, porque põe em causa, claramente, a produção de alimentos. E não sei se, do ponto de vista ambiental, por unidade de produto, é mais sustentável. O que eu acho é que, uma vez mais, deverá ser o consumidor a determinar se, em função da procura, devemos alocar determinada produção em determinado regime.
Em função da procura e do valor da oferta também?
O que aconteceu nos últimos tempos com a pandemia, mais tarde com a guerra, a inflação e o aumento de preços, é que estamos a falar de produtos com preços elevados. E a inflação alta demonstrou uma quebra no consumo desses produtos. Atenção, eu não discuto a procura desses produtos. Acho que o consumidor deve ser livre nas suas escolhas, e ainda não está provado que a agricultura orgânica é mais saudável ou mais saborosa nos produtos do que a outra, se forem cumpridos, de facto, intervalos de segurança. Até porque, infelizmente, não é possível alimentar o mundo com produtos da agricultura biológica.
Mas ainda em relação à reforma de 1992: em todas as reformas, um dos objetivos era a simplificação. Infelizmente nunca se conseguiu. Foi preciso este ano, com as demonstrações e greves dos agricultores, pensar-se em flexibilizar medidas, em simplificar. O processo ainda não está feito, aliás, há uma consulta pública e vamos ver no que ela dá. E depois há a tendência de cada Estado Membro, como dizia o saudoso ministro Sevinate Pinto, ‘ligar o complicómetro’.
Há muita coisa que tem a ver com Bruxelas, mas há muita coisa que tem a ver com Portugal. Por exemplo, não é admissível que os licenciamentos de explorações, de empresas, de atividades, demorem tanto tempo e anos e anos a legislar. Os custos de contexto em Portugal que era uma promessa, enfim, de todos os governos, vamos ver se este concretiza: simplificar os procedimentos legislativos e as aprovações dos processos.
E como estamos a falar de Portugal, que estratégias as autoridades competentes, devem adotar para garantir a segurança alimentar?
Bom, referiu há pouco os setores do vinho e do azeite, houve uma estratégia muito interprofissional, digamos assim. As frutas e hortícolas estão com uma capacidade de exportação grande. Mas depois, olhando para a área que nós representamos, temos as carnes claramente deficitárias, apesar de haver alguma exportação de carne de porco para mercados, por exemplo, na Ásia, mas estamos a falar de quantidades ainda muito pequenas. Exportamos animais vivos, bovinos e pequenos ruminantes para o mercado israelita e o mercado avícola está em expansão. E temos os ovos, que são um bom exemplo. Tradicionalmente, a produção tem sido excedentária, mas no ano passado, segundo o INE, fomos deficitários. E porque? Porque o consumo cresceu mais do que a capacidade de produção.
Mas para nós o ponto crítico tem a ver com as matérias-primas, com os cereais. Por exemplo, no trigo duro temos uma capacidade de aprovisionamento de apenas 5%; se formos ao milho, temos 25 a 30%, dependendo do ano – este ano já sabemos que vamos reduzir a área de milho, e portanto vamos ser ainda mais dependentes. Depois temos as proteínas vegetais, nomeadamente a soja, em que somos dependentes 100%.
Portanto, creio que não podemos perder de vista que a nossa segurança alimentar deve ser equacionada a nível da União Europeia, Nós não podemos ter pretensões em balanços de aprovisionamento excedentários em todos os produtos, não é possível, mas é possível fazer mais e melhor. Não é admissível que não tenhamos uma maior produção de cereais. E o que é que aconteceu nos últimos anos? Como a produção de cereais em Portugal não tem sido suficientemente competitiva ou acarinhada pelo poder político, os agricultores foram alterando as produções. E que tipo de produções temos? Temos produções como o olival ou o amendoal, que são culturas permanentes e não estou a ver que o agricultor vá arrancar essas culturas para produzir cereais. Mas tal não significa que o governo não aposte mais num plano de promoção de cereais, que aliás foi um documento estratégico que tinha vindo do anterior executivo, que nós também acompanhámos. E que não seja possível estimular a produção de cereais, com ou sem regadio, que é outra questão muito importante, com a biotecnologia, com a agricultura de precisão. Portanto, estimular o mais possível a agricultura para ser sustentável.
No seu entender, porque Portugal não tem capacidade de gerar stocks alimentares? Será pela pequena capacidade produtiva ou não temos espaços de armazenamento suficientes?
São as duas coisas. Nós temos uma incapacidade de produção e temos que olhar para ela, de facto. Em relação à produção pecuária, se nós somos deficitários ainda na produção de carne bovina ou carne suína ou em outro tipo de carnes, poderíamos dar as condições aos nossos agricultores, de fazerem essas culturas. Estamos a falar, muitas vezes, de sensibilizar câmaras municipais, porque há muitas câmaras que não querem que se produza pecuária nas suas zonas, têm o direito legítimo de o fazer, mas muitas vezes não se compreende porquê.
Temos que perceber, politicamente, o que é que queremos, porque a pecuária é muito importante. Neste momento, e cada vez mais, já é possível o aproveitamento de subprodutos, os efluentes, a economia circular, digamos, avançou muito e é possível, substituindo os fertilizantes de síntese, adubar as terras. Para culturas de cereais ou outro tipo de culturas. E, muitas vezes, o papel da pecuária não é suficientemente entendido e valorizado. Por outro lado, relativamente aos cereais, obviamente que vai ser possível e desejável aumentar a produção, mas nós nunca vamos ter produção para ser autossuficientes.
Mas tão ou mais importante do que isso, o que nos tornaria menos vulneráveis e menos dependentes da volatilidade dos mercados mundiais, seria ter stocks estratégicos. E esses stocks estratégicos têm a ver com duas coisas. Aumentar a armazenagem, isto é, investimentos para dotar as empresas de maior capacidade de armazenagem, a construção de silos. E, sobretudo, os portos, nomeadamente a Silopor, terem uma capacidade de armazenagem. Nós temos insistido muito na armazenagem da Silopor, para que tenha maior capacidade e não estarmos expostos a notícias como as de que só termos stocks para 15 dias.
Porque cada vez mais as cadeias de abastecimento são voláteis, há as questões do Mar Negro, há as questões do Mar Vermelho, há os custos, há as greves, há as condições climatéricas que também põem em causa a estabilidade das rotas. Há estes cenários de guerra e, infelizmente, parece que vamos ter algumas escaladas na guerra Rússia-Ucrânia. Há a próxima presidência dos Estados Unidos e não sabemos se vai ser mais isolacionista ou menos, e depois temos tensões entre a China e os Estados Unidos. Portanto, digamos que temos uma situação geopolítica e geoestratégica muito complexa, que não nos deixa tranquilos nas questões da segurança das cadeias de abastecimento.
A nível global o que não estarão a fazer as organizações e as nações para se alcançar o objetivo de até 2030, acabar com a fome e garantir o abastecimento alimentar a todas as pessoas? Até que ponto é uma questão de aumento de produção e não de disputa política dentro das organizações e de tomada de posições dos próprios países?
As organizações supranacionais são algo muito complexo. Por exemplo, a Organização Mundial do Comércio praticamente desapareceu e é muito importante que ela seja forte e regule cada vez mais os conflitos. Mas o que se mostrou foi uma impotência para regular esses conflitos. Parece que os países, cada um deles, faz aquilo que quer e sobra-lhes tempo. Tenho falado com colegas que trabalham na OMC e é aflitivo. Porque sentem uma enorme frustração em não conseguirem atingir os seus objetivos. Quem ganhou expressão nos últimos anos? Foi, de facto, a NATO, com a situação da guerra. E, felizmente para todos, a visão da NATO não é apenas defesa. A Nato, ultimamente, tem-se vindo a concentrar nas questões da alimentação e da segurança alimentar.
A NATO é muito mais do que defesa e uma das coisas que está a procurar privilegiar é a questão da estabilidade do funcionamento da segurança alimentar como motivo de paz. E, neste momento, há um conflito aberto. A Polónia, aliás, vai apostar este ano no seu orçamento, num valor histórico em termos de defesa. E penso que isso é uma estratégia que os outros países, os membros da NATO, irão fazer. A questão do investimento dos estados-membros na NATO é muito importante, porque não podemos estar à espera sempre que sejam os nossos amigos americanos a vir proteger a Europa e nós depois dizemos que estamos numa aliança e não cumprimos nada.
Uma das experiências que eu tenho tido agora, na minha ligação recente à NATO, é que não importa só que o país tenha, em caso de guerra ou de conflitos, a capacidade de abastecer as suas populações. Também tem que ter a capacidade de abastecer aqueles que, por alguns motivos de defesa, tenham que situar-se no nosso território ou progredir o nosso território para motivos de estabilidade ou de paz. Portanto, é a nossa população, mas também tem que estar disponível para que, em conjunto, consigamos dar essa segurança alimentar e do ponto de vista logistíco.
Aliás, neste momento, a NATO pediu para que os diferentes países priorizem as suas infraestruturas críticas. Nós, em Portugal, temos uma comissão de planeamento de emergência, de proteção civil. Estamos, neste momento, a realizar reuniões com alguma frequência e houve uma reunião recentemente, antes de férias, sobre a segurança das cadeias de abastecimento. Estivemos a discutir desde a água, a energia, o transporte, a grande ou pequena distribuição, os aspectos logísticos. E, portanto, esse poderá ser um fórum muito relevante, até porque isto não depende apenas do ministro da Administração Interna ou da Defesa. Também tem a ver com a Agricultura, tem a ver com a Infraestrutura. Aliás, este órgão depende diretamente do gabinete do Primeiro-Ministro.
Mas eu gostava que isto fosse levado a sério e fosse interiorizado politicamente, que estivéssemos muito mais preparados antes de acontecer um conflito. Na Europa, neste momento, também estamos a discutir um mecanismo de emergência e de segurança alimentar. Está a começar a haver, cada vez mais, uma ligação entre a NATO e as próprias políticas da União Europeia. E eu não tenho dúvidas que o próximo mandato da Comissão Europeia vai ter em conta cada vez mais a política de defesa. Tem que ter a agricultura nesta perspectiva que também faz parte da alimentação de uma política de Defesa.
E há outra questão. A presidente Van der Leyen deu a entender que queria ter um comissário ou uma comissária para as questões do Mediterrâneo, que têm a ver com as migrações.
Em relação ao Regulamentação Anti Desflorestação da União Europeia: é um exemplo da complexidade regulatória? O que está em causa e o que é urgente limar?
No fundo, é o abastecimento livre de desflorestação. Digamos que o objetivo da União Europeia é legislar para que possamos importar determinados produtos – e são sete neste momento: soja, café, cacau, borracha, palma, madeira e bovinos -, provenientes de regiões que não tenham sido desflorestadas a partir de 2020. Esta foi uma legislação que, estranhamente, foi apressada em termos da proposta da Comissão Europeia. À data havia um comissário europeu muito forte, o Frans Timmermans, mas, enfim, ele fez aquilo que o mandato da Comissão o deixou fazer. O que aconteceu é que, de facto, era preciso, digamos, alguma espetacularidade e mostrar liderança forte da União Europeia e então foi publicada a lei da desflorestação.
Foi discutido no Parlamento Europeu, um Parlamento Europeu que era muito sensível a estas questões ambientais, às questões do bem-estar animal, que são questões relevantes, a redução dos antibióticos, tudo isso são questões relevantes e nós não fomos contra. Pensamos é que tem que haver aqui algum equilíbrio. A legislação entrou, de facto, em vigor e a Europa quer que essas materiais-primas, possam vir de zonas não desflorestadas.
Temos agora outra questão, como provar que vêm de zonas não desflorestadas? É que estamos a falar de países muito complexos. Por exemplo, se nos Estados Unidos podemos admitir que parte do país, ou quase todo o país, já foi desflorestado há muitos anos, estamos a falar, por outro lado, de países dos quais nós importamos e são muito importantes, nomeadamente, o Brasil, a Argentina, o Paraguai. Temos a questão da floresta Amazônica. Por exemplo, o cadastro ambiental rural no Brasil permite que seja feita desflorestação. E quando falamos no café ou no óleo de palma, estamos a falar de países como Etiópia, Malásia, Indonésia, onde, de facto, sobrevivem em muitas zonas graças àquelas produções. Portanto, tudo isto é demasiado complexo.
Nós, em termos de FEFAC, temos um guia para a produção de soja responsável, soja sustentável, com vários critérios, social, ambiental, económico. E muitos dos processos de produção de soja estão dentro desses critérios. A Comissão Europeia não reconheceu como bom este sistema e quer um sistema de geolocalização. Portanto, saber por geolocalização onde é que são as parcelas. E mais, querem uma rastreabilidade física. Não sei se está a imaginar um pequeno produtor…
E quer que o produtor local invista nesse sistema?
Sim, sim. Através do sistema de ‘due diligence’, isto é, tem que haver um certificado emitido localmente, tem que ser reconhecido pela Comissão Europeia, tem que ser inserido numa plataforma, as autoridades de cada Estado membro têm que verificar se está conforme. É preciso um sistema de informação gigantesco, uma plataforma, os testes que foram feitos apresentaram um monte de problemas, o sistema cai…
Portanto, estamos aqui a introduzir complexidade e nós temos colocado à Comissão Europeia uma série de dúvidas, temos pedido explicações. Há três meses que o processo está parado no gabinete da comissária, da presidente da Comissão Europeia, estamos à espera de respostas a partir de Setembro.
Estamos a pedir o adiamento da legislação, da entrada em vigor. Para quê? Para que nos possamos sentar à mesa e preparar as coisas, porque nós não queremos fraude. Nós queremos saber como é que as coisas funcionam e neste momento há uma incerteza jurídica muito grande. No caso da soja, e de acordo com os nossos dados, apenas sete a oito milhões de toneladas de soja poderão cumprir o que está previsto, e fundamentalmente dos Estados Unidos, porque acreditamos que vai ser uma região de baixo risco de solicitação. Mas nós precisamos de 30 milhões. E precisamos de café, precisamos de palma, precisamos de chocolate e de bovinos.
E atenção, isto não é só para importação, também tem a ver com a produção interna e estamos a trabalhar com o ICNF e a DGAV. No caso do bovino de carne essa documentação tem que acompanhar a produção toda até ao retalho. Tendo em conta aquilo que fomos percebendo, o impacto para o nosso país poderá custar, em termos de alimentos compostos para animais, entre mais de 25 a 30 milhões de euros. O que significa que, de duas uma, ou a indústria vai incorporar, de facto, esta crescimento e aí vai perder competitividade, ou vai transferir para o consumidor, provavelmente, parte desses custos. No fim do dia, o que é que teremos? Produtos mais caros. E nós perguntamos se o consumidor tem consciência disto, se está disposto a pagar e se os decisores políticos, antes de tomarem medidas, não têm noção do impacto que as mesmas geram.
Não seria melhor trabalharmos globalmente em conjunto para atingir as metas? Poder-me-á dizer: será que as organizações internacionais serão capazes, depois, de impor estas regras? Mas temos que ir por aqui, senão, estamos a perder competitividade e a colocar em causa a tal segurança alimentar.
A ciência é um aliado do objetivo de segurança alimentar para todos?
Eu penso que é um grande aliado. Eu sei que a ciência tem um problema: não sabe comunicar, ou é difícil comunicar a ciência. E depois, há outro fenómeno- a comunicação nas redes sociais. Há uma desinformação muito grande, as pessoas leem pouco, leem cada vez menos e preocupam-se com os highlights e com os títulos. Mas há muita ciência. Cada vez mais há uma ligação entre o mundo empresarial, a investigação e a academia, as universidades. Por isso foi criado o consórcio FeedInov, de que a IACA é, em Portugal, o principal acionista, e estamos à procura de não só comunicar aquilo que fazemos, com dados concretos, a tentar responder a questões que as empresas colocam, estudando-as com a investigação e com as universidades, levando depois os resultados ao conhecimento público.
O desenvolvimento de outros produtos, como as proteínas insect based ou à base de algas, podem vir a ser uma fonte de alimentação complementar para o abastecimento humano e também animal?
Sim, são coisas que estamos a estudar, que têm de ser estudadas e que necessitam de escala. Mas podem ser uma fonte de alimentação complementar. Não de substituição, mas complementar. Disso, eu não tenho dúvidas. Agora, como tudo, passará sempre pela aceitação do consumidor, e por aquilo consumidor quiser, mas eu penso que poderá ser uma alternativa na alimentação animal, sobretudo na aquacultura, nos petfoods. Neste momento, é preciso escala e para haver escala é preciso haver aceitação. Mas penso que é uma questão de tempo.
Do que trata o projecto InsectEra?
O InsectEra, no fundo, é um PRR. A EntoGreen é que está a liderar o consórcio e no dia 23 de outubro vai realizar-se o congresso InsectEra, com o tema ‘Os insetos como ferramenta de sustentabilidade’. Um grande objetivo do projeto é a construção de uma fábrica em Pernes, para, de facto, ser possível começarmos a ter a tal escala e desenvolver produtos para estes setores todos. E nos animais, não é só a questão da alimentação pela alimentação; é que os insetos poderão ter um efeito de defesa e reduzir a utilização de micropianos e proteger a saúde do animal. Mas depois há consumidores e há empresas que, por questões ligadas à desflorestação, à biotecnologia, à sustentabilidade ou outra, querem trabalhar com insetos. Portanto, poderá ser, de facto, uma alternativa. Em termos de alimentação animal, penso que terá mais potencial do que eventualmente a alimentação humana. Mas vamos ver como é que o mercado reage.
As alterações climáticas e os conflitos armados são grandes ameaças ao abastecimento alimentar a nivel mundial. São realmente as maiores ameças? Ou o protecionismo praticado por nações e a dependência de grandes países produtores, como China, EUA e Brasil, são dificuldades igualmente grandes?
O que se nota é que há um descontentamento mundial grande em relação, e goste-se ou não, à maneira como têm funcionado as organizações supra-nacionais, a ONU, a Organização Mundial do Comércio, as diferentes estruturas dentro das Nações Unidas. O Secretário-Geral da ONU tem vindo a chamar a atenção, desde há muitos anos, para reformas e não tem sido fácil, porque há o veto do Conselho de Segurança. E o que temos vindo a notar é que o chamado Sul global, países como o Brasil, a China, a Índia, a África do Sul têm vindo a tentar convencer outros de que haverá uma política alternativa.
Mas ainda não se percebeu bem se eles querem destruir completamente essas organizações ou se querem construir por dentro. Há esta tensão entre a China e os Estados Unidos e a União Europeia. Não só alguns países estão a impor taxas aos veículos elétricos, como a China está a ripostar e, portanto, provavelmente vai impor sanções a produtos alimentares, a produtos nos quais a Europa é dependente. Vamos ver. A ameaça existe, mas eu não acredito que seja do interesse da China ou da Europa ou dos Estados Unidos abrir um foco de tensão permanente. Mas, obviamente, vamos viver aqui, se calhar, numa guerra fria em que vai ser importante manter os canais diplomáticos abertos.
Nessa perspectiva, não interessa, de facto, à Europa uma política proteccionista. O isolacionismo penso que não interessa a ninguém. Mas também, por outro lado, já percebemos que a globalização desenfreada e sem regras também não interessa. Portanto, digamos que o grande desafio que temos pela frente é tentar encontrar este equilíbrio num mundo instável em que não temos lideranças. Enfim, parece não termos líderes fortes. Cada vez mais julgamos com o peso da opinião pública e com o ruído e a desinformação, que é outra questão relevante.
É o primeiro perito português a integrar a NATO na área da soberania alimentar. Quais são as soluções para as quais gostaria de contribuir enquanto perito da NATO?
Eu vou fazer parte de um grupo de planeamento da agricultura e da alimentação, fundamentalmente na área de regiões do Mediterrâneo. E, portanto, aqui está a importância que a NATO está a dar a esta região, porque o Mediterrâneo tem muito a ver também, com o Mar Negro, com a Turquia. E se falarmos, enfim, na área de Egipto, Marrocos, Tunísia, bom, é uma área muito delicada.
E o que eu espero é, por um lado, pôr as questões da soberania alimentar e da insuficiência alimentar na agenda. Por outro lado, acentuar que isto respeita a todos. Esta é uma nomeação individual, não é nomeação política. É uma nomeação meramente técnica e porque quem me nomeou acredita que eu tenho alguma capacidade e conhecimento de abordar estas áreas, tenho informação, ando nisto já há alguns anos. Mas eu não dependo politicamente de ninguém, vou ter o apoio do staff do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral, vou estar enquadrado no conselho de planeamento e proteção civil, que responde ao Primeiro-Miinistro.
Agora, o que eu penso fazer é tentar que as organizações ligadas à fileira agroalimentar, Confagri, CAP, CNA, APED, FIPA, participem juntamente com o Governo e transferir, se for possível, para aqui, o grupo de diálogo que funcionou durante a pandemia. Nós vamos limitar-nos a dar recomendações. O Grupo de Planeamento de Agricultura e Alimentação depende de um comitê de direção de resiliência que responde diretamente ao Secretário-Geral da NATO. Não vou ter mais nenhum papel do que fazer ouvir a minha voz e isso vou tentar fazer e prestigiar Portugal. Vou-me empenhar nisso. Se conseguir sensibilizar para que as políticas públicas tenham em conta, de facto, estes impactos, acho que já não é mal de todo. Vou tentar contribuir para a mudança e vou empenhar-me com todas as minhas forças e com tudo aquilo que eu sei.
A minha última questão parte do título de um artigo que escreveu há relativamente pouco tempo e que se chama ‘A comida não dá votos. E a falta dela?’ Isto é um alerta?
É um alerta. Penso que foi a Dra. Manuela Ferreira Leite que disse, e foi mal interpretada, ou, pelo menos, percebe-se o que ela quis dizer, sobre vivermos seis meses numa ditadura, sem democracia, para as pessoas darem valor, àquilo que têm. Eu não queria que isso acontecesse, mas, de facto, a comida não dá votos.
E o que é que eu quis dizer com isso? Que a agricultura e a alimentação não dão votos. Porque na campanha, falou-se pouco da agricultura. Aliás, na campanha para as eleições europeias, falou-se nada da Europa. Há uma iliteracia muito grande relativamente à União Europeia, como é que ela funciona, e a Europa ali passou ao lado. De facto, houve promessas, estive em Santarém durante a campanha (eleitoral), ‘a agricultura era isto’, ‘o Governo ia reverter e fazer e acontecer’. Ainda não se viu nada.
O que eu acho que é importante é o agricultor ter apoio, haver proximidade e ser apoiado. Também não me parece que, como funcionava a agricultura antigamente, dessem um grande apoio, porque havia insuficiência de meios. Aliás, é outra questão. Nós, na DGAV, na nossa área, temos uma insuficiência enorme de meios. O Estado precisa de se renovar, precisa de gente. Porque cada vez se tem mais competências e menos pessoas para as executar.
E, portanto, o que eu quis dizer é que, então, se a comida não dá votos, talvez se faltar comida, as pessoas aprendam e valorizem mais a importância que a alimentação tem na nossa vida.
Esta entrevista foi publicada na edição 426 do Hipersuper