Espaço ReUse instalado em hipermercado da Auchan, em parceria com a MyCloma
Planeta ou carteira: O que pesa mais no mercado de segunda mão?
A revenda de roupa, acessórios e calçado deverá passar a representar 23% das vendas globais desta indústria em 2023. Fomos perceber como é que as empresas de compra e venda em segunda mão se estão a posicionar para tirar partido deste crescimento em Portugal, que está alavancado em dois vetores: a sustentabilidade da carteira e do planeta
Rita Gonçalves
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A revenda de roupa, acessórios e calçado deverá passar a representar 23% das vendas globais desta indústria em 2023. Fomos perceber como é que as empresas de compra e venda em segunda mão se estão a posicionar para tirar partido deste crescimento em Portugal, que está alavancado em dois vetores: a sustentabilidade da carteira e do planeta
Os europeus compram em média 16kg de roupa por ano, o que representa um crescimento de 400% comparando com o valor há 20 anos, segundo dados do relatório “Our good brands: The real impact of the fast fashion industry in the world”.
De acordo as Nações Unidas, a indústria da moda é responsável por entre 2% e 8% das emissões globais de carbono, libertando 1,7 mil milhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono para a atmosfera. A manter-se o ritmo atual, esta indústria não conseguirá cumprir as metas de redução de emissões poluentes para metade até 2030, alerta a ONU.
A moda é também uma indústria que consome muitos recursos ao planeta e um deles é a água. São necessários em média 2.700lt de água para produzir uma t-shirt e 11.000 litros para fabricar umas calças de ganga, a título de exemplo.
Perante números desta ordem de grandeza, colocam-se questões importantes, sendo a mais óbvia se o planeta tem capacidade para continuar a produzir quantidades astronómicas de roupa. E é este pensamento crítico que desperta e amadurece a consciência ambiental. Apesar de esta consciência ambiental ser mais vincada nos consumidores das gerações mais jovens, os portugueses de uma forma geral estão cada vez mais despertos para o consumo consciente, responsável e amigo do planeta. Os resultados de um estudo recente do Observador Cetelem (ver caixa) confirman isso mesmo: 32% dos portugueses consideram estar familiarizados com o conceito de consumo sustentável e 44% afirmam conhecer “mais ou menos” o conceito. E se, para 19% dos inquiridos, o consumo responsável não é uma preocupação, para 16% é mesmo um modo de vida.
É neste contexto que têm vindo a nascer cada vez mais marcas negócios no mercado de segunda mão e empresas já estabelecidas neste mercado veem as suas operações dar um salto. A sustentabilidade, a par do preço (ainda o fator mais valorizado nas decisões de compra de produtos em segunda vida), tem sido o motor de desenvolvimento deste mercado, sendo que a proposta de valor destas empresas sai reforçada no atual contexto económico e social, no qual os consumidores procuram formas de poupança para fazer face à escalada do custo de vida.
Não é de admirar, assim, que o mercado global de venda de roupa, acessórios e calçado em segunda mão tenha triplicado desde 2020. Segundo dados de um estudo do Boston Consulting Group, em parceria com o portal de revenda Vestiaire Collective, o volume de negócios deste mercado representa atualmente entre 100 e 120 mil milhões de euros, ou seja 3% das vendas globais. O estudo estima que a revenda destes produtos passe a representar 23% das vendas globais de roupa, acessórios e calçado já no final do próximo ano.
“Não há compra mais sustentável que possamos fazer do que comprar em segunda mão, dado que estamos a prolongar o ciclo de vida de um produto, sem impacto ambiental na sua produção, porque o mesmo já foi produzido”. Além disso, “a compra em segunda mão assegura a sustentabilidade económica dos orçamentos familiares, uma vez que os preços em segunda mão são mais acessíveis, em comparação com o mercado regular”. Quem o diz é Ana Raquel Azevedo, cofundadora da plataforma portuguesa de compra e venda online de roupa em segunda mão MyCloma, que iniciou a sua operação há dois anos e meio, com a missão de “fazer da segunda mão a primeira opção” e “mudar o paradigma da revenda de roupa” em Portugal.
Além disso, este mercado representa uma oportunidade para as pessoas recuperarem o dinheiro investido em peças de roupa que já não vestem. A MyCloma oferece dois serviços de recolha: a recolha “normal” (a roupa é valorizada e cada cliente recebe uma comissão após a venda na plataforma) e a recolha “15/15” (a plataforma adquire as peças ao cliente através de vales Mycloma e vales Auchan). “No último mês, temos verificado uma maior procura da recolha 15-15, que poderá estar associada à oferta de vales para gastar no nosso parceiro Auchan, fruto do atual contexto económico e da inflação brutal que temos assistido nos produtos alimentares”, conta a responsável.
A empresa nativa online entrou, entretanto, no canal offline através de uma parceria pioneira e estratégica com a Auchan Retail Portugal que culminou com a criação dos espaços “ReUse” nos pontos de venda da retalhista de origem francesa, permitindo aos portugueses experimentar e comprar roupa em segunda mão a preços acessíveis. “Estamos já em dez lojas e temos um ambicioso plano de expansão com outros parceiros”.
Ressalvando que a plataforma está há pouco mais de dois anos no mercado, Ana Raquel Azevedo salienta que a MyCloma “sentiu um grande crescimento este ano”, considerando que a evolução registada pela empresa é demonstrativa do potencial de crescimento que este mercado terá nos próximos anos. “Os nossos números refletem que estamos no caminho da consolidação do mercado português”, afiança, sem adiantar números concretos.
A cofundadora da MyCloma acredita verdadeiramente que o mercado de revenda, a longo prazo, competirá com o mercado tradicional dado que a “segunda mão está a aumentar o seu espaço nos armários dos consumidores, mais do que qualquer outro canal”. “Não há como retroceder. Este é o caminho do mercado e da indústria têxtil”.
Tendo em conta o aumento da concorrência, o que diferencia a MyCloma das restantes empresas a operar neste mercado? A curadoria e a qualidade, considera a empresária. “A nível mundial, são inúmeras as empresas de venda de roupa em segunda mão, principalmente no modelo Consumer to Consumer (C2C) e vão continuar a ser cada vez mais e mais”. Nesse sentido, “a MyCloma destaca-se por ter o seu modelo assente no modelo Consumer to Business to Consumer (C2B2C) e assegurar curadoria e um controlo de qualidade de todas as peças vendidas”.
A fundadora da plataforma que saltou do online para os hipermercados da Auchan afirma que são já muitos os estudos a apontar que quase metade dos consumidores millennials e da geração Z recusar-se-ão a comprar roupas e marcas que não sejam minimamente sustentáveis. E 62% destes consumidores dizem procurar um item de segunda mão antes de comprá-lo novo. “O mercado, mas principalmente as marcas, não vão ter outra opção do que dar aos consumidores aquilo que eles mais desejam”, vaticina Ana Raquel Azevedo.
Então, sustentabilidade ou carteira, que fator pesa mais na decisão da compra em segunda mão? “O que a nossa experiência tem demonstrado é que a primeira compra de um cliente está assente em um destes princípios: ou na compra sustentável ou na compra mais económica, mas o que o leva à lealdade do comprador é a confiança que tem na marca e na garantia de qualidade do produto”, conta a cofundadora.
Os clientes da marca são maioritariamente mulheres, entre os 25 e 45 anos, de todas as regiões do país. Embora o público masculino já procure a segunda mão, explica a responsável, a oferta é mais reduzida uma vez que regra geral o homem compra menos e dá mais utilização à roupa que tem no armário.
Sobre o futuro, Ana Raquel Azevedo adianta que a estratégia passa por apostar em tecnologias de informação com o objetivo de incrementar a eficiência das operações para reforçar a posição no mercado português e escalar o negócio para novas geografias.
“Portugal é um mercado muito forte para a revenda”
A loja de roupa em segunda mão Micolet ficou online em Portugal em meados de 2018. A empresa nasceu há cerca de sete anos em Biscaia, no País Basco, pela mão de Aritza Loroño e José María del Moral. “Portugal é um mercado muito forte para a revenda”, assegura Aritza Loroño, em entrevista ao Hipersuper. O mercado português já representa uma quota de 25% para a Micolet e, desde 2021, que se aproxima de Espanha, que representa 35% das vendas. “Já no nosso relatório de moda circular, em 2020, 60% das mulheres portuguesas admitiam que a sua perceção da roupa em segunda mão melhorou nos últimos cinco anos, o que demostram um aumento da perceção e do consumo de roupa usada”, salienta.
Na opinião de Aritza Loroño, a revenda é a chave para manter o planeta tal como o conhecemos, já que é um modelo empresarial muito mais ecológico e sustentável. Ainda que a cofundadora não acredite que o mercado de revenda seja capaz de superar a médio-prazo indústria de fast fashion, uma vez que se trata de uma “mudança radical” nos hábitos de consumo, a moda seminova irá tornar-se “uma opção normal quando se trata de comprar”.
A marca denota algumas alterações no padrão de consumo em segunda mão. As clientes do sexo feminino estão em maioria, nomeadamente as mulheres entre 18 e 39 anos, mas, nos últimos anos, a faixa etária entre os 25 e 39 anos tem aumentado. “O público mais maduro está a começar a abordar o mercado de segunda mão. “Embora seja verdade que os mais novos continuam a liderar”, ressalva Aritza Loroño.
A empresa nota ainda um aumento de interesse por parte dos homens, especialmente durante o ano em curso, “algo que é novo para a Micolet, pois até 2020 só vendíamos roupa e acessórios de mulher”, além de uma mudança no tipo de cliente, existindo “cada vez mais pessoas com um nível de poder de compra médio-alto a comprar em segunda mão”. A responsável destaca que a sustentabilidade e a exclusividade das peças estão a atrair novos clientes para este mercado.
Para permanecer na rota do crescimento, a Micolet está a abraçar novos mercados e abriu a compra de roupa aos países vizinhos, como Portugal e França, para agilizar o crescimento. “Desta forma, dispomos de mais roupa, uma oferta mais variada e compradores de diferentes nacionalidades”, explica cofundadora da plataforma.
Atingir um volume de negócios de 10 milhões de euros em 2023, uma rede de lojas físicas em diferentes partes de Espanha e alcançar 2,5 milhões de utilizadores, são as metas traçadas para 2023.
Revenda de roupa de criança já atingiu a maioridade
Ao contrário destes negócios recém-nascidos, o mercado de revenda de roupa de criança atingiu a maioridade há alguns em Portugal e a cadeia Kid to Kid contribuiu para o desenvolvimento deste mercado. A operar no mercado nacional desde 2003, a insígnia opera uma cadeia de 20 lojas, responsáveis pela reutilização de mais de 1.300.000 artigos, declara Paulo Frias Costa, Master Portugal e Espanha, em entrevista ao Hipersuper. “Considerando que para produzir uma t-shirt são necessários 2.700 litros de água e que mais de 86% dos têxteis não usados acabam em aterro e são incinerados, é fácil contabilizar o enorme impacto que as lojas Kid to Kid e os seus clientes têm na poupança de água e na redução das emissões de CO2”, enfatiza o gestor.
Depois de ter perdido volume de vendas em 2020 (-25%) e 2021 (20%), a cadeia espera no final deste ano um crescimento de 10% em relação 2019, período pré-pandemia. Paulo Costa explica que os confinamentos e a diminuição da mobilidade reduziram o número de pessoas em loja e, ainda mais, o número de clientes que vendem os seus artigos. O resultado foi uma “redução abruta” do stock em loja e das vendas potenciais.
A empresa compra diretamente os artigos que comercializa às famílias, é criteriosa na seleção e pratica preços entre 50 e 70% abaixo do valor do mesmo artigo no mercado de primeira mão. As avaliações são feitas no momento e os clientes podem optar por receber imediatamente em dinheiro ou escolher o crédito na loja, que tem uma valorização de 20% sobre o valor pago em dinheiro. “Com este procedimento promovemos a economia circular e ao fazê-lo as famílias ganham ainda mais do que quando apenas compram ou vendem”, explica o responsável.
A Kid to Kit tem clientes de todos os estratos sociais, mas, convidado a traçar um perfil, Paulo Costa salienta as famílias jovens para as quais comprar em segunda mão é uma questão de atitude.
Se há cerca de 20 anos existia um preconceito em relação ao mercado de segunda mão, atualmente os consumidores fazem questão de exibir as suas “compras inteligentes” nas redes sociais. “As novas gerações privilegiam um serviço mais abrangente, maior seleção de artigos e presença nas redes sociais. Passámos de um processo de compra e venda, para uma experiência”, considera o gestor, acrescentando que atualmente todas as lojas “fazem envios dos artigos aos clientes e utilizam as redes para promover, mostrar e contactar os clientes”.
Para contornar o revés no stock que viveu na pandemia, a empresa alargou a oferta de artigos de primeira mão, recorrendo a novos fornecedores, que, neste momento, representam um crescimento de 10% em vendas, em relação a 2019, enquanto os artigos usados crescem 3%. Por um lado, estes artigos “trazem mais valias por serem sustentáveis”, por outro permitem “uma oferta a valores bastante competitivos”, termina.
Os números do consumo responsável em Portugal
- Um total de 44% dos portugueses afirma conhecer “mais ou menos” o conceito de consumo sustentável.
- 32% consideram que estão familiarizados com o conceito. Os inquiridos mais velhos, dos 55 aos 74 anos, são os que se encontram menos familiarizados com o conceito (média de 43%).
- Dos que se encontram familiarizados com o conceito e que adotam já algumas práticas responsáveis, 32% dizem que o consumo sustentável é uma opção, ou seja, quando surge a oportunidade, às vezes, consomem produtos com menor pegada ecológica.
- O que é uma opção para uns, é um objetivo para outros: 31% tentam consumir com responsabilidade sempre que possível.
- Para 19% dos inquiridos, o consumo responsável não é uma preocupação, enquanto 16% consideram ser um modo de vida.
- Sempre que se trata de consumir de forma responsável, 42% sentem que são eles que tomam a iniciativa. Por outro lado, 39% confessam sentirem-se pressionados pela sociedade.
- Para 46% dos inquiridos é difícil ou muito difícil fazer escolhas de consumo mais sustentáveis, em particular os inquiridos com menores rendimentos (57%) e os mais velhos, dos 65 aos 74 anos (55%).
- 33% dos portugueses consideram que atualmente é preciso gastar um pouco mais para se adotar hábitos de consumo sustentáveis, 31% consideram que gastam exatamente o mesmo e 30% dizem que para adotar esses hábitos necessitam de gastar muito mais.
- Na região Norte, 51% dos consumidores portugueses dizem ser possível gastar o mesmo na adoção de hábitos de consumo sustentáveis. Os consumidores da região Sul são aqueles que afirmam ter de gastar muito mais para fazer um consumo sustentável (48%)
- Relativamente aos efeitos da inflação no consumo, 38% dos portugueses inquiridos revelam ter mantido o consumo de produtos sustentáveis, nomeadamente os mais jovens, dos 18 aos 24 anos (49%) e os inquiridos com mais rendimentos (41%).
- 22% dizem ter diminuído o consumo deste tipo de produtos e 8% deixaram de optar por estes produtos. 21% confessam que não se preocupavam e continuam a não se preocupar com o consumo de produtos mais sustentáveis.
- Os inquiridos mais velhos são os que mais corroboram essa afirmação (34%), assim como os inquiridos que vivem na região Norte do país (30%).
Fonte: Observador Cetelem Consumo Sustentável 2022
*Artigo originalmente publicado na edição 407 do Hipersuper